Eram 5 da manhã, eu estava a caminho de Barbacena, um distrito que fica aqui no nosso interior mineiro. Apesar do nome recorrentemente chegar até mim, eu nunca havia tido a curiosidade de descobrir mais sobre a cidade. Tinha poucas informações sobre Barbacena, com exceção de que lá era conhecida como “A cidade da Loucura”.
Durante a breve viagem de uma hora e meia, não me atentei muito aos caminhos; um livro que falava sobre um manicômio que marcou a história de Barbacena convenientemente estava baixado em meu Kindle. Ali, dentro daquele ônibus, foi a primeira vez que entendi porque Barbacena era compulsivamente associada à loucura.
O livro em questão, chamado “O Holocausto Brasileiro” da jornalista Juiz-forana Daniela Arbex, provocava uma mistura de apreciação e repulsa durante a leitura. Antes dessa obra, inúmeras outras já organizavam essa história. O livro de Daniela Arbex é um salto no mercado editorial, e antes mesmo de começar o curso em Jornalismo, essa obra já estava na minha lista de livros para ler. Foi interessante pensar que o livro seria lido após anos, em um momento tão oportuno.
Eu nunca havia pisado em Barbacena e minha única referência era esse livro; já sabia o que fazer. Precisava visitar o famoso Museu da Loucura, mas também seria necessário ver a história da cidade por outros ângulos. Eram 8 da manhã e eu já estava na rodoviária, lembro de rir ao perceber como as rodoviárias das cidades interioranas de Minas são tão parecidas. Foram 5 minutos até o hotel onde eu iria me hospedar. O check-in era meio dia e eu já estava ansioso para começar a minha pequena saga turística.
Depois de muito refletir sobre o que fazer, deixei minhas malas na recepção e uma pesquisa no Maps me fez perceber que eu estava um pouco longe do Museu, eram mais de 4 km e eu tinha que economizar ao máximo. Decidi, relutando comigo mesmo, que iria a pé! Conheceria um pouco as ruas da cidade e já chegaria no Museu com outras referências. De quebra, economizaria uma grana.
Fui seguindo um longo canteiro que se tornava um córrego que se transformava em uma pequena queda d’água. Não era incomum que eu tivesse que me esquivar de gangs de cachorros caramelos, mas ao mesmo tempo a rua movimentada me fazia perceber que essa não era uma cidade tão pacata assim. Foi uma hora caminhando até chegar no museu e o que mais me chamou atenção no primeiro momento é que o local ainda era uma área hospitalar muito importante da região.
E aqui começo a contar para vocês a experiência da visitação.
Avenida Quatorze de Agosto, sem número, no bairro Floresta em Barbacena. Um homem bonito de longos dreads me passa algumas informações, me dá as boas-vindas e me convida a assinar o livro de visitações.
As salas são escuras, as paredes pintadas de preto e aquele assoalho de madeira rangendo a cada passo fazem um arrepio subir a nuca, é impossível ignorar aquilo que não dá pra se ver: a dor. É quase espiritual, até para mim, que muitas vezes corro em direção contrária ao que é “metafísico”. A primeira impressão é que essa não é uma experiência que pode ser feita despretensiosamente, é uma forma completamente sinestésica de se aprender uma história.
A primeira sala reunia além da intervenção alguns itens de pessoas que fizeram parte dessa história, cachimbos fumados, bonecas que representavam o sonho de muitos em construir uma família ou os uniformes que quase sempre não eram utilizados, crianças, adultos e idosos corriam nus por aquelas alas. Uma imagem do abuso começava a se formar na minha cabeça. Os instrumentos de tortura conhecidos como eletrochoque ou semelhantes me remetiam à uma vitrola, inconvenientemente parecia um artefato de enfeite a ser colecionado.
No primeiro andar a experiência é mais expositiva, já no segundo, após subir uma escada de madeira, uma ambientação sonora toma conta da visitação. Poderia até ser uma grande viagem, mas de fato é uma experiência sinestésica. Em alguns momentos se enxerga os sons, em outros os sons se tornam visões.
O museu contava com um segundo patamar com intervenções sonoras – cantos, contação de histórias e gemidos – são a trilha sonora da leitura das histórias contadas pelas paredes.
Do holocausto brasileiro: uma reflexão.
De fato não tenho o objetivo de reproduzir em texto a experiência de visitar o Museu da Loucura, mas sim uma forma de, no emaranhado de memórias, criar reflexões sobre a loucura. Mas o que é ser um louco? Não identificar a diferença entre o real e o irreal? Ou uma forma de conter corpos que por alguma motivação não deveriam transitar pelas ruas com os “outros”.
No nosso grupo de educação tutorial, o grupo de estudos Faces do Mal-Estar Contemporâneo: Discursos fílmicos como lócus de observação, um assunto que dolorosamente sempre se faz presente em nossas discussões: “Transtornos mentais”. Quais características te fazem ser diagnosticado com algum transtorno mental/cognitivo?
“O Censo escolar do Brasil registrou um aumento de 280% no número de estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares apenas no período entre 2017 e 2021. No Brasil, dados da Organização Mundial da Saúde sugerem a existência de dois milhões de autistas, mas esta estimativa é considerada desatualizada. Levantamento recente do Center for Disease Control and Prevention dos EUA mostrou que, se nos anos 1970 o número de diagnósticos de TEA estava na faixa de 1 para cada 10 mil crianças, em 1995 já havia pulado para 1 em cada mil e continuou crescendo aceleradamente, até chegar a 1 a cada 59 em 2018 e 1 a cada 44 segundo relatório de 2022. Se essa proporção for adaptada para a população brasileira, isso resultaria em um contingente de mais de 4 milhões de pessoas.”
Fonte: https://jornal.unesp.br/2023/02/15/com-numero-de-diagnosticos-em-crescimento-vertiginoso-transtorno-do-espectro-autista-ainda-e-desafio-para-pesquisa-neurologica/
Recorrentemente penso sobre o aumento de diagnósticos em transtornos mentais. E sobre o peso do diagnóstico para lidar com as dores. A patologia justifica nossas dores?
Na arte, a melancolia pode ser reconhecida como força motriz da criatividade. O reflexo da sociedade em nossas percepções muitas vezes se materializa em um sentimento melancólico que hoje pode se assemelhar ao que é chamado depressão. Não seria sincero afirmar que a dor é necessária para a arte, mas seria indulgente julgar a dor desnecessária.
Me soa como uma forma de canalizar o sofrimento. Nossas discussões perpassam a abstração do sofrimento e da loucura pela estética. Como esses estados ou sentimentos se concretizam, seja na arte ou nos subterfúgios químicos cada dia mais sofisticados, parecem ser um mecanismo possível de conviver consigo mesmo.
Será que um dia o homem vai aprender a viver com seu córtex? Será que ele vai aprender a viver com seus sistemas de comunicação? Ele parece sempre ter precisado recorrer a drogas para aquietar (tanto quanto para agravar) sua condição interna.
LASSWELL, Harold. Propaganda techniques in world war. Massachussets: MIT Press, 1971 (p. 17) (Tradução nossa)
Nas redes sociais, o assunto é disfuncional, nos faz cair em dúvidas sobre nossa saúde mental, ou lidar com profissionais que garantem ferramentas propícias para autodiagnósticos. As pílulas parecem sempre uma resposta imediata. E assim como qualquer psicoativo, “se você quer comprar é mais fácil que pão.”
Não tenho o objetivo de negar a eficiência da medicina e da psicologia, mas sim pensar sobre elas como uma das possibilidades e não as únicas. O questionamento não é sobre a eficiência de um tratamento medicamentoso ou da psicanálise. Mas sim as formas de inibir corpos pelos discursos médicos.
Não apenas isso. No grupo de estudos “Faces do Mal-Estar Contemporâneo: Discursos fílmicos como lócus de observação”, discussões como essas guiam diversas leituras fílmicas em relação à comunicação. Se você se interessar, logo mais teremos mais uma etapa dos nossos estudos!
Vídeo gravado durante o modulo:
“Faces do Mal-Estar Contemporâneo: Discursos fílmicos como lócus de observação” articulado pelo Prof. Wedencley Alves
Texto escrito por: Marco Antônio Carvalho Gomes
(Petiano – 6° periodo/Jornalismo)