No capítulo 3 da obra A partilha do sensível, de Jacques Rancière, o autor se contrapõe à conhecida tese benjaminiana de que as novas formas de reprodutibilidade técnica da arte tenham aberto caminho para a representação do indivíduo anônimo. Para Rancière, seria importante ver as coisas justamente ao contrário: ele defende que teria sido a ascensão do indivíduo anônimo como objeto de interesse artístico que teria possibilitado o próprio reconhecimento das novas técnicas de reprodutibilidade como formas de arte.
Para Rancière, sendo assim, todo esse processo começou bem antes da emergência das artes de reprodução mecânica (tais como a fotografia e cinema) e foi ele, na verdade, que tornou possível atribuir a elas o status artístico. Para o autor, nesse sentido, o advento do chamado “regime estético das artes” representou a ruína do sistema de representação anteriormente vigente, desfazendo a ligação hierárquica entre o tema e o seu modo de representação. A arte deixa de valer pelo eventual status daquilo ou daqueles que representa, e passa a ser valorizada por seus próprios procedimentos internos.
Essa verdadeira revolução estética, para Rancière, teria ocorrido primeiro na pintura e na literatura, muito antes das novas técnicas de reprodutibilidade ganharem terreno. No campo da pintura, por exemplo, o autor chama a atenção para a tendência que foi se estabelecendo de se buscar representar criaturas anônimas no centro das telas, e não mais apenas as “grandes figuras” ou os “grandes acontecimentos”. Teria sido a partir desse novo olhar capa de reconhecer não só a importância mas também a eventual beleza dessas figuras que se abriu também o caminhos para procedimentos similares por parte de fotógrafos como David Octavius Hill, Stieglitz , Paul Strand e Walker Evans, que se notabilizaram pelos seus focos insistentes sobre figuras socialmente desprezadas e por retratos frontais de figuras aparentemente “comuns” ou “desimportantes”.
Já na literatura, Rancière mostra como o mesmo processo de renovação profunda do olhar se deu ao falar da atenção minuciosa e reveladora em relação a traços, vestimentas e gestos de indivíduos comuns em Balzac; da crença na importância da representação do “esgoto social” como retrato profundo de uma civilização em Victor Hugo; e da “maneira absoluta” de Flaubert ver as coisas se aplicando igualmente a personagens em posições sociais muito discrepante. Da mesma forma, Rancière relembra o romance Guerra e Paz, de Tolstói, que faz uma contraposição de narrativas e testemunhos dos anônimos aos documentos oficiais focados nos comandantes das “grandes batalhas”.
É possível perceber, em relação a esse ponto, uma conexão muito significativa entre a obra de Tolstói e a de Svetlana Aleksièvitch, já que esta estaria, de certa forma, dando continuidade ao gesto do seu predecessor num cenário já mais contemporâneo que lhe permitiu radicalizar o novo regime estético das artes. Afinal, Svetlana ousou trazer, para o centro do olhar coletivo, narrativas antes solenemente ignoradas como aquelas das crianças que viveram o trauma e o cotidiano da guerra – o que ela faz na perturbadora obra “As últimas testemunhas”.
Na obra em questão, que foi sendo desenvolvida ao longo de 28 anos, é possível notar que a autora optou por ocultar totalmente a sua própria voz, quebrando também a tradicional hierarquia entre o autor e suas “fontes”. Nesse contexto, o que há de trabalho “autoral” se desloca do monopólio da palavra, para a construção da narrativa, a escolha do tema, a busca dos depoimentos ouvidos, o registro e a edição dos mesmos, a organização da sequência dentro do livro e ainda a escolha das imagens de capa.
Permitindo-nos traduzir filosoficamente (e também antecipando) as questões trazidas à tona pela obra de Svetlana, Rancière nos lembra, por fim, que “a revolução estética é antes de tudo a glória do qualquer um – que é literária e pictural, antes de ser fotográfica ou cinematográfica”. E mais, ainda: no novo regime estético das artes, esse “banal” não só é objeto de interesse, mas também de admiração pelo que pode conter de beleza. E essa beleza, por sua vez, vem de algo que é nada menos do que a sua ligação especial com isso que chamamos de “real”.
Por Betta Mazocoli