A propagação da palavra: como a televisão difunde visões sobre diferentes religiões
A última edição do Big Brother Brasil, exibida de 15 de janeiro a 12 de abril de 2019, trouxe consigo diversas controvérsias e, ao mesmo tempo, abriu espaço para algumas discussões sobre um assunto muitas vezes ignorado. A vitória da mineira Paula Von Sperling, com 61,09% dos votos, deixou o debate sobre a intolerância religiosa, muitas vezes esquecido, novamente em evidência.
As polêmicas sobre a bacharel em Direito partiram da insatisfação dos internautas com as conversas entre ela e a amiga Hariany sobre as manifestações religiosas de outro participante, Rodrigo. “Eu tenho muito medo do Rodrigo. Ele fala o tempo todo desse negócio de Oxum deles lá, que ele conhece”, disse Paula. “Tenho medo disso, mas nosso Deus é maior”.
Em caso anterior, dessa vez sobre o participante Maycon, que disse ter sofrido arrepios com a “música esquisita” dançada por Gabriela e Rodrigo, o público já havia manifestado descontentamento. O participante posteriormente foi eliminado pelo público e a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância do Rio de Janeiro abriu um inquérito para apurar o caso.
A Rede Globo, que transmite o programa, porém, não tomou nenhuma atitude concreta. É importante ressaltar que a emissora mantém no ar, desde 2016, a campanha “Tudo Começa pelo Respeito”, em parceria com UNESCO, UNICEF, UNAIDS e ONU MULHERES. Apesar disso, diversas controvérsias envolvendo o mesmo tema foram criadas com base em suas novelas. A antítese entre o discurso e os programas da Rede Globo causam, desse modo, estranheza no momento de julgar suas decisões.
Um dos casos mais recentes, visto como ofensivo por praticantes da Umbanda, foi a novela Segundo Sol, transmitida entre 14 de maio e 9 de novembro de 2018. Exibida no horário nobre da televisão brasileira, a novela das nove já havia sido atacada anteriormente por apresentar poucos negros em seu elenco. Além disso, o autor João Emanuel Carneiro gerou revolta entre lideranças da Umbanda no Brasil ao mostrar a vilã Laureta (Adriana Esteves) pedindo ajuda aos orixás para prosseguir com seus atos de maldade. O erro na abordagem parece o mesmo notado nos diálogos anteriormente citados do Big Brother Brasil. A visão do diferente como algo ruim ainda se faz presente nos discursos dominantes, entre eles os da maior emissora televisiva do país. Percebe-se que, apesar de se tratar de uma vilã que, por sua condição de antagonista, possui características questionáveis, a transmissão de cenas como essa podem acarretar distorções na visão do espectador.
As indignações não param por aí. A novela A Regra do Jogo também foi atacada por retratar de forma incorreta religiões de matriz africana. A novela foi ao ar às 21 horas no período de 31 de agosto de 2015 a 11 de março de 2016. As cenas foram criticadas por reafirmar estereótipos constantemente atribuídos às religiões de matriz africana, mostrando a personagem Dalila (Alexandra Richter) incorporando uma entidade religiosa na passagem de ano em Copacabana.
Apesar dessas controvérsias, a Globo também conseguiu agradar com outra de suas novelas, dessa vez direcionada ao público jovem. Em Malhação Vidas Brasileiras, os roteiristas tiveram a oportunidade de abordar o preconceito religioso dentro da escola e o fizeram com êxito. Em outro caso, na novela Lado a Lado, a emissora também acertou ao explicar o Candomblé de maneira simples e não ofensiva.
Outras emissoras também foram criticadas e até mesmo punidas pela justiça por manifestações preconceituosas. É o caso da Record, que, apenas em janeiro de 2019, firmou um acordo que colocou fim ao embate judicial de 15 anos por veicular, em 2004, agressões a religiões de matriz africana. Quadros como “Mistérios” e “Sessão de Descarrego” foram citados na ação.
A Record, do bispo Edir Macedo e fundador da Igreja Universal, é conhecida por transmitir programas voltados principalmente para o público evangélico. O bispo também lançara, em 2013, o best-seller “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?” No livro, afirma que diversos cultos de origem africana são canais de demônios.
O pesquisador Marco Túlio de Sousa, doutorando em Comunicação, passou grande parte do seu período acadêmico estudando as questões de mídia e religião. Segundo ele, não há uma dominação ou manipulação total dos meios e, embora reconheça o papel midiático na expansão da igreja neopentecostal, considera que esse aspecto não é suficiente para se compreender o crescimento dessas religiões.
Ao comparar o modelo brasileiro com o americano, Marco Túlio defende que existem diferenças marcantes entre os dois, que ajudam até mesmo a explicar o forte vínculo de instituições com os programas veiculados. Após explicar o fenômeno da “igreja eletrônica” nos Estados Unidos, que consistia de programas apresentados por lideranças religiosas distanciadas de suas instituições de origem, ele mostra como o fenômeno ocorrido no Brasil foi diferente: “aqui, os programas comandados pela liderança procuram, de maneira geral, ofertar uma modalidade de experiência religiosa para quem já é membro da instituição e, ou, incitar as pessoas a irem ao templo”.
Marco Túlio criticou a maneira utilizada pela rede Globo para apresentar os evangélicos: “na verdade, os evangélicos eram retratados de maneira bem mais preconceituosa, como, por exemplo, na série Decadência, em que Edson Celulari interpretava um pastor que usava a fé das pessoas para enriquecer”. O pesquisador, que é egresso do PET Facom, considera, contudo, que essa postura foi se modificando, citando como exemplo a novela de 2013 “Amor à Vida”, que contou com um núcleo evangélico e a transmissão anual do Festival Promessas. Lembrou, ainda, que celebridades gospels têm sido chamadas, mais frequentemente, para programas de entrevistas. Segundo ele, essa alteração na abordagem pode ter influenciado nos ataques a crenças de matriz afro anteriormente citados: “receio que esta mudança em relação aos evangélicos possa ter respingado de maneira negativa na abordagem da emissora em relação às religiões afro. A novela
Salve Jorge, por exemplo, enfrentou muita resistência entre os pentecostais e neopentecostais.” Para Marco Túlio, a emissora mantém um tom “simpático” para com a igreja católica.
Há, segundo o pesquisador, um padrão na conexão de programas essencialmente religiosos com seu público. “Quando estudei a programação televisiva da Igreja Universal nas madrugadas observei que havia uma “arquitetura narrativa” que se repetia, formada por “narrativa de fracasso”, “narrativa de sucesso” e convite.” A fórmula consistiria, inicialmente, da apresentação de um caso aparentemente sem solução, uma “narrativa de fracasso”. Em seguida, o pastor mostrava que a situação já fora vivenciada por outros membros da igreja e que havia solução. Nesse momento, era inserido o testemunho de um fiel da Universal que, após chegar ao ápice do seu sofrimento, encontrava a igreja e, cumprindo os “sacrifícios” a ele atribuídos, conseguia superar as dificuldades. Após esta “narrativa de sucesso”, o pastor associava as duas situações e convidava as pessoas a participar dos cultos da igreja, sugerindo que a mesma mudança poderia ocorrer na vida delas.
Outra estratégia citada foi a linguagem marcada pela emotividade. “Procurava-se construir uma relação de proximidade e, até mesmo, de intimidade entre o pastor apresentador e o público. Para tanto, conversas por telefone, músicas, entrevistas, testemunhos e vídeos que utilizavam imagens de filmes eram explorados”, afirmou. “Estabelecer uma relação de confiança com o espectador é fundamental para atingir os objetivos da emissão”.
Já as novelas e outros programas de entretenimento, como o Big Brother, alcançam uma massa muito maior da população e reproduzem discursos ofensivos, segundo ele, de maneira implícita. A identificação com a realidade do personagem e sua inserção em um contexto semelhante ao cotidiano tornaria os atos dos personagens comuns e passíveis de repetição pelo público. “O que me parece ponto comum é que a incorporação do religioso pelo entretenimento midiático estabelece uma nova camada de mediação para com a religiosidade e isso possibilita o surgimento de experiências religiosas que não estão necessariamente alinhadas com as instituições”, afirmou Marco Túlio.
Citando o exemplo de sua pesquisa sobre a midiatização da peregrinação à Santiago de Compostela, ele explica que muitos buscam, em sua própria peregrinação, uma vivência que se assemelha ao que foi narrado em um filme ou livro de ficção sobre o Caminho de Santiago. Em consequência disso, as instituições religiosas tem espaço para se aproximar de pessoas que se distanciaram do templo. Por outro lado, essa aproximação se faz a partir de uma voz não institucionalizada e de um interesse que nem sempre se harmoniza com as doutrinas.
Quando questionado sobre as principais diferenças entre programas essencialmente religiosos para aqueles que abordam o tema apenas em alguns momentos, Marco Túlio disse que estas residem nos objetivos dos produtores e no modo como o religioso se faz presente. Se a principal preocupação em programas de instituições religiosas é a de respeitar aspectos próprios de suas doutrinas, aqueles voltados para o entretenimento do público em geral colocam a religião como componente acessório que interessa às lógicas próprias das corporações de mídia, visando audiência. “A Globo abordou pontualmente em suas produções ficcionais o espiritismo, a umbanda e o catolicismo popular”, destaca Marco Tulio. “Isso não significa necessariamente que ela esteja interessada em propagar uma crença em detrimento a outra, mas que naquele momento se viu na religião algum elemento que serve a suas narrativas, a seus interesses”.
Segundo o pesquisador, se nas produções religiosas é o midiático que se submete aos interesses de grupos religiosos, o que ocorre nas produções seculares é o inverso, consistindo num processo que, em menor ou maior grau, exige uma dupla adaptação, da religião e da mídia, independentemente de quem seja o responsável pela produção. Essa conclusão de Marco Túlio explicaria a oposição discursiva anteriormente citada entre diferentes novelas da Rede Globo, nas quais religiões de matriz africana foram tratadas tanto de maneira preconceituosa quanto de maneira correta.
Apesar de todos esses programas buscarem o lucro, aqueles essencialmente religiosos também tem um discurso a manter. Assim, quando a Record ataca religiões de matriz africana ainda consegue se esconder por trás da justificativa de estar apenas defendendo as próprias crenças. Dessa forma, se uma dessas emissoras reflete um tipo de preconceito institucionalizado, a outra parece se perder, em alguns momentos, em um senso comum pouco crítico que acaba por retratar estereótipos. Prova da limitação desses discursos é a existência de outros programas de entretenimento que conseguiram representar diversas religiões com êxito. O que nos parece, ao final de tudo, é que apesar de se tratarem de empresas, tudo se resume a um preconceito que já existe dentro da sociedade, sendo reproduzido e aceito pela maioria.
Mariana Guiciard
Dandara