Por: Pedro Augusto Figueiredo
Dublin, Irlanda. 16 de junho de 1904. Um homem sai de casa pela manhã, vai ao enterro de um conhecido, passa na farmácia para comprar produtos que a esposa lhe pediu e, por fim, resolve alguns problemas em um jornal onde presta serviços. Feito isso, ele está livre para voltar para casa. No entanto, seu casamento está em crise e nesta tarde sua esposa vai receber a visita de um admirador, com quem provavelmente irá traí-lo. O homem então passa a buscar motivos para vagar pela cidade e só voltar para casa quando estiver certo de que a mulher estará dormindo. Ele não quer ter de falar com ela.
Este é o enredo de Ulysses, um dos principais livros do século XX escrito pelo irlandês James Joyce e publicado em 1922. O homem é Leopold Bloom, personagem que dá nome ao Bloomsday, data comemorada na Irlanda e em diversos países no dia de 16 de junho. É neste dia, em 1904, que toda a história de Ulysses se desenrola. Na vida de Joyce esta foi a data em que ele passeou pela primeira vez pelas ruas de Dublin com a mulher que viria a se tornar sua esposa, Nora Barnacle.
“Eu quis passar uma imagem tão completa de Dublin que se um dia a cidade de repente desaparecesse da face da Terra ela poderia ser reconstruída a partir do meu livro”, disse Joyce sobre Ulysses a um amigo em 1934. Apesar da forte relação do livro com a cidade, a primeira comemoração do Bloomsday aconteceu em Paris no ano de 1929. A tradução francesa do livro fora publicada em fevereiro daquele ano, sete anos após a edição original.
A data só foi comemorada na Irlanda em 1954, no aniversário de 50 anos do passeio entre Joyce e Nora. Dois escritores irlandeses, Patrick Kavanagh e Flann O’Brien, saíram às ruas de Dublin para visitar os mesmos lugares que Leopold Bloom no romance. No trajeto, entre um copo e outro, eles leram partes de Ulysses em voz alta.
Atualmente, além das visitas aos lugares citados no livro, as celebrações mais comuns envolvem encenações, leituras e palestras. Os mais entusiasmados se vestem à moda irlandesa dos primeiros anos do século XX e tomam o mesmo café da manhã que Bloom no livro, o que inclui comer rins e fígado de porco. No Brasil, a data é comemorada em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Florianópolis, entre outras cidades.
Ulysses é a palavra em latim para Odisseu, protagonista da “Odisseia”, de Homero. No épico grego, Odisseu tenta voltar para casa após dez anos lutando na Guerra de Troia. Este é outro ponto em comum entre as duas obras: a jornada do herói no retorno para casa. “O Ulysses é uma paródia moderna da Odisseia, no sentido de uma reescritura com uma inversão. Se em Homero você tem a Penélope (esposa de Odisseu), que espera pacientemente mais de vinte anos pelo retorno do herói, em Joyce você vai ter a Molly Bloom (esposa de Leopold) que não é muito de esperar não. Isso é um ponto de inversão”, afirma Rogério Ferreira, professor da Faculdade de Letras da UFJF.
Paralelos homéricos à parte, a principal característica do Ulysses é a linguagem. Um dos principais recursos utilizados por Joyce na composição do romance é o fluxo de consciência. Essa técnica busca simular o pensamento humano e tenta colocar no papel a livre associação de ideias e a mistura entre raciocínio lógico e impressões pessoais que acontece em nossa mente.
Além disso, o autor utiliza técnicas narrativas diferentes para narrar cada capítulo do livro. “No episódio o Gado do Sol, Bloom fica sabendo do nascimento de um bebê de uma família conhecida e vai até o hospital visitá-lo. Para narrar esse episódio, Joyce faz um paralelo entre os nascimentos do bebê e de uma língua. Então, o capítulo começa com um inglês arcaico do século XIII e, na medida em que você avança, a linguagem evolui para o inglês do século XIV, XV, e por aí vai”, exemplifica Rogério.
A linguagem também é o motivo principal pelo qual devemos continuar lendo Ulysses, segundo o professor do curso de Letras da UniFOA, André Capilé. “Há uma imensa crise de repertórios hoje e, possivelmente, daqui a muito pouco tempo, Ulysses vai se tornar ilegível. Devemos lê-lo para manter a linguagem e as línguas do mundo eficientes. A mesma afirmação serve para Machado de Assis, Musil, Rosa, Faulkner, Mário e Oswald de Andrade, entre outros.”